Desde o dia 5 de novembro do ano passado, temos uma inusitada professora
a nos dar lições sobre como o meio ambiente é tratado no Brasil:
trata-se da lama despejada no Rio Doce por causa do rompimento da
barragem do Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais.
A primeira das lições que a lama nos deu é sobre o licenciamento
ambiental. Esse processo, fragilizado e negligenciado ao longo dos
últimos anos, é o cerne do desastre de Mariana. Ali, o licenciamento
ambiental foi, mais uma vez, desrespeitado e as condicionantes que
deveriam ser cumpridas, como o estabelecimento de um plano de
emergência, foram deixadas de lado. Apenas uma amostra do que vem
acontecendo pelo país afora. Como se isso fosse pouco, há iniciativas
tramitando no Congresso Nacional que fragilizam ainda mais o
licenciamento ambiental, como o projeto de lei do Senado (PLS) nº
654/2015, que cria um procedimento acelerado e simplificado para o
licenciamento de grandes obras, como hidrelétricas, estradas, ferrovias,
portos e instalações de telecomunicações.
A segunda lição da lama versa sobre o descumprimento histórico
dos códigos florestais, tanto o que estava em vigor até 2012 como o novo
código. A região da Bacia do Rio Doce estava, já antes da passagem da
lama, muito degradada: Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas
Legais não vinham sendo respeitadas há anos, como tem sido a regra em
diversas partes do Brasil. O resultado se traduzia em muitas áreas
desmatadas, o comprometimento da recarga dos aquíferos da região e o
assoreamento dos rios, elementos que dificultam a regeneração dos danos
ambientais produzidos pelo rompimento da barragem.
A terceira lição é uma derivação da segunda: o descumprimento da
lei florestal se reflete também sobre a integridade das Unidades de
Conservação que estão na Bacia do Rio Doce. Seus entornos, e em muitos
casos também suas áreas, têm sido alvo de desmatamento e de especulação
imobiliária. Tudo isso acontecendo no Cerrado e na Mata Atlântica,
biomas que, mesmo sem as lições da professora lama, sabemos que estão
bastante ameaçados.
A quarta lição pode ser resumida como o binômio “forte reação e
fraca ação”. Está relacionada com as duas anteriores, mas é, talvez, uma
lição ainda mais amarga. O Rio Doce já não chegava mais em sua foz, em
Linhares, no Espírito Santo. Ou seja, não conduzia mais água até a foz,
por causa do comprometimento de sua vegetação e da devastação da bacia.
Quando essa situação se deu, em julho do ano passado, houve uma grita
geral: reportagens, protestos e indignação. Apesar disso, pouco ou nada
foi feito para resolver a situação. Esse binômio, refletido nessa lição,
pode ser visto em diversos casos onde o meio ambiente é o foco. Um
resumo possível dessas últimas três lições é que as questões ambientais
não são prioritárias, sempre perdem para outros interesses como os da
mineração, da especulação imobiliária, do agronegócio e da siderurgia.
A quinta lição que a lama nos deu ao passar pelos diversos
municípios é que a existência de saneamento básico não é a regra e sim a
exceção. Diversas cidades, como Governador Valadares, jogam esgoto ‘in
natura’ no Rio Doce. Vale dizer que as projeções recentes dão conta de
que mantido o ritmo atual, os serviços de saneamento básico serão
universalizados, no país, só em 2053...
Caminha junto com essa lição, a sexta, que trata da poluição da
bacia. Todo tipo de rejeitos eram jogados historicamente no Rio Doce e
em outros rios da bacia. A fiscalização era e ainda é deficitária; ainda
assim, alguns poluidores foram multados, mas em agosto do ano passado, o
Estado de Minas Gerais aprovou uma lei anistiando as multas ambientais.
Essa lição não precisa nem de mais explicações, nem de resumo: trata-se
de um convite ao descaso com o meio ambiente.
A sétima lição se relaciona com a forma pela qual o Estado
brasileiro trata as populações que vivem diretamente dos recursos
naturais, como os pescadores que foram prejudicados pela passagem da
lama. Calcula-se que a quantidade de peixes mortos superou 10 toneladas.
Mas vale perguntar: será que, mesmo antes da lama, numa bacia tão
degradada, os pescadores conseguiam tirar seu sustento das águas e viver
bem? E os índios Krenak, cuja terra indígena é banhada pelo Rio
ex-Doce? Rio sagrado para esse povo que afirma que “morre o rio,
morremos todos”? Como viverão? Fala-se em pelo menos 10 anos para o rio
começar a se recuperar... ainda assim, em condições favoráveis...
A oitava é uma lição de complacência. Ou seja, de como o Brasil
lida com esse tipo de situação. Uma amostra disso está nas campanhas
para que o resto do país enviasse água potável para a região do
desastre. Ora, é, certamente, ótimo que as pessoas se engajem e
colaborem, mas quem tinha que obrigatoriamente garantir a água para as
populações afetadas pelo desastre é a empresa responsável pela
catástrofe, a Samarco, sendo que ao estado caberia obrigá-la a fazê-lo. O
mesmo vale para as medidas técnicas que deveriam ter sido adotadas para
evitar, ou pelo menos para mitigar, suas graves consequências.
Infelizmente, parece que o Estado brasileiro não quer se indispor com as
empresas mesmo diante de um desastre de tais proporções.
A nona lição é sobre nossa ignorância: pouco sabemos sobre nossa
biodiversidade marinha e pouco sabemos sobre quais serão os impactos das
partículas de lama, diluídas na água do mar, sobre corais, crustáceos,
moluscos, peixes e mamíferos. Como a pluma (termo usado para designar as
partículas de lama diluídas no mar) não é tão facilmente visível como a
lama concentrada, as pessoas continuam nadando nas praias e comendo
frutos do mar, um mar cheio de lama e talvez de metais pesados. Quem
sabe quais serão as consequências... Essa ignorância, para piorar,
guarda uma arrogância: não sabemos o que fazer? Por que não procuramos
especialistas, pesquisadores, estudiosos, gente de qualquer lugar do
planeta que poderia nos ajudar a conter a lama ou pelo menos seus
impactos?
Por fim, a décima lição é sobre a inconsequência. Não estão
claros, nem são divulgados, quais são os reais impactos dessa lama e
seus elementos sobre as populações humanas. É conveniente esquecer que a
lama ainda está vazando da barragem para o falecido Rio Doce e que a
previsão é que isso ainda aconteça por mais dois meses. Nos últimos
dias, apesar das constantes negações do governo, a lama, ou a pluma,
parece ter chegado ao Parque Nacional Marinho de Abrolhos e certamente
vai causar grandes impactos por lá... No país em que não há
consequências para autoridades que dão declarações inverídicas, a
ministra do Meio Ambiente afirmou que isso não aconteceria. E se
aconteceu?
*Nurit Bensusan é assessora do Instituto Socioambiental (ISA) e especialista em biodiversidade.
FONTE: Este artigo foi publicado originalmente no site do Instituto
Sociambiental (ISA) e republicado em O Eco, está disponível também aqui.